6.6.07

5 horas em Congonhas

O vazio entre o embarque para Florianópolis e o meu processo mental de criação, ou seja, como minha mente funciona em momentos de absoluta solidão -- apesar da lotação absurda da sala de embarque e da impossibilidade de uma poltrona disponível -- me fez sentar no chão, ler a Folha de S. Paulo, ao mesmo tempo que olhava para o painel com noticiário volátil passando, registrando apenas a manchete sobre a banda U2, cotada para gravar o slogan de Hillary Clinton à presidência dos EUA. Ver o Bono trabalhando para a família Clinton me fez pensar na falência total da sociedade vigente; falência esta que me deixa por 5 horas esperando o vôo 1280. Já preparada para acampanhar no carpete de Congonhas, trouxe trabalhos acadêmicos para corrigir [uma pilha sem fim de textos], o livro "A ilha deserta", de Deleuze, muitos pacotes de Trident de canela, uma garrafa de água com gás [a minha preferida] e revistas de decoração para quando tudo falhar e eu não quiser pensar em nada sério, apenas sonhar com meu novo jardim, sofá ou banheiro.
A previsão do tempo no painel da Clima Tempo avisa que a frente fria já castiga Santa Catarina. Uma senhora com blusa de lã bege, ao meu lado, pede para caseira ligar o aquecedor, guardar lenha e preparar uma sopa de feijão para o jantar. Ela também diz que está levando o salário. Lembro e anoto no bloquinho que também preciso voltar para São Paulo com o salário da empregada em mãos. Canso de ficar acampada e vou até a Lasselva. No trajeto, um expresso puro na Brunella. Automaticamente, ao ler Brunella, me vejo no Guarujá, em meados de 1984, tomando sorvete de pistache na praia da Enseada. Bebo o expresso enquanto me dirijo à Lasselva. Folheio a biografia da Maysa[...] uma mulher de muitos amores. O prefácio diz que sua vida recomeçava e acabava a cada dia. Outro livro tira a minha atenção e dispenso Maysa momentaneamente. "Enquanto o ditador dormia" relata o dia-a-dia de Lisboa dos anos 50. A Lisboa pós guerra, os amores de Alice -- adoro este nome. Mais um Trident de canela. Recebo um torpedo. Leio e volto para a narrativa de Domingos Amaral sobre Lisboa [mais de 200 mil livros vendidos em Portugal desde o lançamento]. Correlação imediata com um livro antigo que adoro "O outono do patriarca" de Garcia Marquez.

Volto ao carpete de Congonhas e decido dar um tempo com os trabalhos acadêmicos. Começo a reler "Raymond Roussel ou o horror do vazio", artigo de 1963 de Deleuze. Decido usá-lo como base para minha aula de sábado na pós-graduação. [...] O vazio será preenchido e transposto pelo quê? Nos pergunta Deleuze [...] por extraordinárias máquinas, por estranhos atores-artesões. As coisas e os seres seguem a linguagem. Tudo nos mecanismos e nos comportamentos é imitação, reprodução, récita [...] são as próprias coisas que se abrem à custa de um dublê, de uma máscara. E o vázio é agora [...]
Tenho fome. Enfim decolo às 13h00 com fome e um vazio interno imenso.

2 comentários:

Anônimo disse...

Tadinha. Essas sensações de multidão solitária são estranhas mesmo. O pior é que passamos por isso todos os dias;numa sociedade individualista com um exército de egocentrados que só aumenta, não há como não sentir algum vazio. Pensar no sistema que faz da sociedade o que ela é hoje aumenta esse vazio.Acho que somos heróis e heroinas anônimos fadados a enfrentar esse mundo que parece cada vez mais surreal. Diante disso me apego aos meus amores e aos poucos bons amigos tentando dar algum sentido pra esse vazio todo que nos rodeia. O mundo esta um tanto inóspito e por teimosia, por bravata a gente vai levando...
"Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça
E a gente vai tomando que, também, sem cachaça
Ninguém segura esse rojão"
um beijão carinhoso pra vc.
ps:estava com saudades dos seus textos, já fazia um tempo que não postava.

Pollyana Ferrari disse...

Vai gostar do texto do contêiner...Foi uma experiência incrível retomar a velha vontade de acampar no quintal. O dia-a-dia tem sido cruel, não sobra tempo para sonhar, para escrever...Mas vamos em frente, sem olhar para trás. A cada novo amanhecer tudo se renova.
Boa semana meu leitor