12.11.08

Árida Lei











A rua estreita me angustiava. As pessoas feias também. Tudo era árido, marrom, desértico. Casas sem telhado, caixas d´água na cor azul estragavam o céu. Olhei em volta, só pobreza, muros pichados, mulheres arrastando os filhos para escola.

-- Aqui é o fórum? Perguntei para uma gorda que subia a ladeira.

-- É sim, respondeu com um olhar que engata uma pergunta: cadê o filho? Não veio pedir pensão? Só que ficou só no olhar, mas a pergunta veio no vácuo até mim.

A espera ocorria nos bancos da praça, colocados na calçada da edificação de dois andares. Sentei-me ao sol. Lembrei do dia que saí correndo para comprar um despertador, pois sabia que, a partir daquele dia, dormiria sozinha de novo, ninguém mais me chamaria para tomar café.

A vara de Família fica no piso superior, no térreo, a Criminal. Dejavú total. Vejo meu ex e a advogada num terninho rosa Barbie. Já vi esta cena antes, só que o cenário era mais bonito, prédio centenário, advogadas de preto, homens elegantes em ternos bem cortados. Gravatas Armani.

Claudia Fartollo, sala 3, grita o escrivão. O acompanho sem questionar. O tapete vermelho, disposto como em dia de casamento na igreja, cheira a mofo. A sala, com porta-dupla em mogno, tenta passar austeridade.

Ao entrar vejo o juiz em sua pose de Lei. Que jovem? Deve ser mais novo do que eu; com certeza sua primeira Vara. Ele se levanta e inicia a sessão. Percebo que sua beca é curta para ele. Que horror! Juiz feio e com beca curta. Mau presságio.

Todos começam por baixo, penso baixinho. Percebo o vaso com rosas vermelhas, de plástico. Dejavú novamente. Lembro do sábado que casamos pela manhã, num cartório feio, com balcão improvisado, toalha com etiqueta do Extra e rosas brancas, também de plástico.

Ele lê o processo, quer agradar e faz comentários sobre a importância dos pertences pessoais (livros, discos, revistas etc).

-- O casamento acabou? Os dois estão certos disto? Sim, responde Leopoldo Henrique. Já esgotamos todas as tentativas. Neste instante o tempo se congela.

Em segundos revi toda nossa história. A magia do encontro na água, o sabor do melhor beijo do mundo, da última temporada de beijos. Tudo começa a ficar turvo; vejo o juiz falando baixinho que a união não gerou filhos e isso era bom.

Percebo que tenho um estranho na minha frente. Percebo também que nosso roteiro chegou ao fim. Um final com paredes rachadas, juiz em início de carreira e uma fila de mulheres com filhos em busca de pensão alimentícia na sala ao lado.

Realmente vejo que não temos mais nada em comum. Ficou apenas a camisa, a calça, o cinto, o sapato – todos presentes meus – talvez até a cueca, mas essa não verei mais. Mas as roupas envelhecem como nós, um dia perderão a cor.

Tudo termina em dez minutos. Entro muda, assino e saio muda.

Quero sair correndo, dirigir até Santos, entrar no mar, comer queijadinha; conversar com o Leão Marinho da minha infância, visitar o aquário do Gonzaga. Me sinto Kundera em “A insustentável leveza do ser”. Nunca um percurso de 15 km demorou tanto. Já que não conseguirei entrar no mar, busco um prédio bem alto. Quero sentar e olhar a cidade lá de cima. Não estarei sozinha, meu anjo da guarda vai comigo. Ele anda cansado, tenho dado bastante trabalho.

-- Como pode alguém ter tantos flashbacks? Pergunto ao anjo, que apenas sorri, com sorriso largo, ele tem “sardinhas”. Todos os que têm sardas, pertencem à mesma galáxia, acredito nisso.

Não quero voltar para casa, o mundo gira dentro de mim. Lembrei-me dos meus 22 quando quis ir para rodoviária com uma passagem apenas de ida; quis fugir, desaparecer, sumir numa paisagem desértica. A sensação era a mesma. Também não queria voltar para casa e um pequeno, que chorava a noite toda de cólica, me fez ficar e comprar muito Ninho, latas e mais latas.

Dos 25, que acreditei na razão, na casa própria. Ouvia “Abacateiro”, e achava que Gil dava conta do recado, Tropicália na veia. Dos 33, quando achei que tinha todas as respostas, não lembrei de música nenhuma. A cada despedida, um desejo, um sabor. O gosto fica na boca, não passa. Carregamos como uma música que gostamos.

ps: a foto do deserto de Atacama é linda demais. Amei sua foto Angelo Duarte

Um comentário:

Tânia N. disse...

Lindo texto e foto divina, parabéns!
Beijocas,